sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Retrato da saúde pública em Marília, a erosão de um sistema



Os problemas de saúde pública em Marília não são novos e muito menos restritos a nossa cidade. Como parte do sistema nacional de saúde (SUS) – criado a partir das lutas sociais da década de 80 e contemplado dentro da constituição de 1988 – a organização da saúde pública em Marília segue modelos nacionais e também reproduz vários problemas presentes nos quatro cantos do país.

Contudo, há algumas especificidades em nossa cidade que em um primeiro momento podem parecer benéficas para a construção de uma saúde pública de maior qualidade, mas o que observamos nos últimos anos é uma piora progressiva na qualidade da atenção em saúde à população. Contamos hoje em Marília com duas faculdades de medicina que formam por ano 180 médicos e 120 enfermeiros, com 5 hospitais credenciados ao atendimento SUS (3 deles públicos e 2 privados com convênio SUS), com 34 USF (Unidade de Saúde da Família, responsáveis pelo atendimento em nível básico de atenção – clinica geral) e 12 UBS (Unidade Básica de Saúde, responsáveis pelo atendimento em nível intermediário – especialidades) e 1 ambulatório de especialidade médicas.

Apesar dessa rede que pode ser vista como regular para o tamanho populacional de nossa cidade, as filas para atendimento, procedimentos e exames de média e alta complexidade ainda são gigantescas. Há hoje em Marília 9 USF que não dispõem de médicos. Todas tem estrutura física sucateada e falta de uma série de medicamentos necessários ao tratamento das doenças. O encaminhamento dessas unidades para as especialidades médicas chega a demorar mais de um ano em alguns casos. Os atendimentos de urgência e emergência são caóticos e não conseguem responder as demandas da população de maneira satisfatória.

O maior pronto socorro da região localizado no Hospital das Clinicas de Marilia passa diariamente por situações de falta de equipamentos, medicamentos e são comuns as cenas de pacientes atendidos e mantidos em corredores devido à falta de leitos. Os atendimentos de alta complexidade como cirurgias e internações são reféns de um sistema que não responde as reais demandas das pessoas, mas sim a uma estrutura envelhecida que não consegue responder ao aumento das doenças crônicas e o crescimento da população.

Diante de tudo isso, o governo estadual liberou uma verba há 2 anos atrás de mais de 70 milhões de reais para reforma do Hospital das Clínicas de Marília – maior hospital público de uma região de saúde com 62 municípios e mais de um milhão de habitantes. É importante lembrar que o referido hospital que data da década de 60 nunca na sua história passou por uma reforma de médio ou grande tamanho. Com isso, segundo os governantes municipais e estaduais os problemas de saúde em nossa cidade e na região seriam resolvidos.

O argumento desse investimento mágico tenta, em todos os debates, jogar para longe dos olhos da população as décadas de falta de investimentos e abandono da saúde pública em Marília. Tenta fazer calar aqueles que criticam o atual modelo de saúde organizado em Marília como se esses não reconhecem o grande esforço tanto do governo municipal quanto estadual em liberar tamanha verba em um momento de crise de nossa economia. Reconhece-se a importância da liberação dessas verbas, contudo o problemas de fundo não podem e não serão esquecidos por migalhas que aparecem quando a situação se torna insustentável.

Assim, é necessário repensarmos toda a estrutura dos serviços de saúde em nossa cidade. Primeiramente, compreender que saúde não se realiza somente através de medidas curativas como medicamentos e exames, mas através de toda uma gama de serviços públicos, (ou que deveriam ser públicos) e de qualidade, como transporte, lazer, cultura, habitação, alimentação, acesso à educação e tantos outros que não contamos de maneira satisfatória hoje. A grande maioria de nossa população é hoje submetida a longa jornadas de trabalho com salários baixos, não consegue se deslocar dentro de sua própria cidade de maneira efetiva, não tem acesso a lazer e cultura no seu cotidiano, alimentam-se cada vez mais com produtos de baixa qualidade e com grande presença dos mais diversos tipos de toxinas, frequenta escolas e universidades baseadas em um ensino voltado exclusivamente para o mercado de trabalho e não para sua emancipação.

Essas pessoas que são a maioria absoluta certamente irão adoecer de maneira desigual daqueles que possuem acessos a todas benesses do capitalismo. Basear uma política de saúde pública deixando de lado a discussão da socialização de nossas riquezas coletivas e do acesso aos serviços que são essenciais a vida é somente medicar um moribundo para aliviar um pouco de sua dor e não trata-lo para que supere sua doença.

Por outro lado, é necessário que os serviços de saúde contem com estrutura suficiente para atender com o que existe de mais avançado aqueles que necessitam no momento de seu adoecimento. O cuidado a saúde tem de ter um foco extremamente forte na prevenção como já foi abordado, contudo tem que estar preparado para dar respostas concretas as necessidades sociais. Hoje o que temos é uma chamada cesta básica da saúde. Os indivíduos, teoricamente dentro do SUS têm acesso a uma saúde universal, ou seja, todos podem ser atendidos em qualquer serviço de maneira gratuita. Todavia, essa universalização é excludente, pois não possibilita o acesso a todos os serviços e medicamentos que existem para possibilitar a cura de uma determinada doença.

Sendo assim, precisamos não isolar a pauta da saúde de todas as outras, pois, como já foi apresentado, o acesso a serviços necessários a vida que devem ser públicos, gratuitos e com qualidade irá possibilitar que as pessoas vivam melhor e adoecem menos. Além disso, precisamos de uma maior valorização dos profissionais de saúde. Maior valorização não somente através de maiores salários, mas de condições estruturais que possam permitir a realização do seu trabalho na perspectiva mais ampla da palavra.

Desenho de Carlos Latuff
Assim, é urgente revermos como o município contrata seus profissionais de saúde na atenção básica. Atualmente, isso é realizado através de uma organização social de saúde (OSS Gota de Leite) que não garante aos profissionais nenhum tipo de estabilidade em seus empregos, que não oferece nenhum plano de carreira, que remunera mal e que possui uma estratégia de administração baseada no menor gasto possível. É necessário acabar imediatamente com o controle da Gota de Leite sobre a atenção básica, colocando-a sobre administração direta do município, com controle social efetivo, com estabilidade e plano de carreira para seus funcionários. As verbas municipais precisam ser revistas desde sua alocação até seu tamanho para possibilitar que as USFs tenham estrutura adequadas, equipamentos básicos e medicamentos que realmente possam tratar os problemas de saúde da população na sua origem sem sobrecarregar os serviços terciários como os hospitais. No atendimento de especialidades precisamos expandir o número de UBS no município equipa-las com estruturas básicas como Raio-x, exames laboratoriais básicos, ultrassom e condição de realização de procedimentos cirúrgicos de baixa complexidade. Esses equipamentos e procedimentos há muito tempo já deixaram de serem considerados dentro da medicina de alta tecnologia e, dessa forma, precisam estar mais próximos da população.

Na atenção terciária, nossos hospitais precisam ser expandidos tanto no número de leitos como na capacidade de realização de cirurgias e exames de alta complexidade. É vergonhoso que tenhamos uma Faculdade de Medicina pública em nossa cidade que tem renome nacional e internacional e não realiza vários procedimentos de alta complexidade que são executados pela filantrópica Santa Casa de Marília, lar de vários professores da mesma instituição e que tem conhecimento técnico para realiza-los.



O acesso a saúde talvez seja uma das pautas que mais nos tocam hoje. Talvez pela incapacidade de organizar o SUS dentro de um mundo capitalista estamos nos defrontando cada vez mais com uma contradição que parece impossível de ser resolvida. A mercantilização cada vez maior da vida e da sociedade como um todo coloca em xeque o estabelecimento de um sistema público de saúde que não seja transformado em um produto como outro qualquer possível de negociação e de extração de lucros. Por isso, nos comunistas acreditamos que só teremos um sistema de saúde que atenda as nossas reais demandas, um mundo em que possamos ser verdadeiramente livres com o fim do capitalismo. Com o SUS e contra o seu desmonte, mas para além do SUS e da sociedade capitalista.

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