Desenho de Carlos Latuff |
Em
plena eleição de 2006 no México, os habitantes do estado de Oaxaca, se
revoltaram contra a forte repressão ordenada contra professores em greve, então
acampados próximo ao palácio do governo. Foi o estopim para que a população
organizasse um levante popular entre junho e novembro de 2006. Muito do aparato
repressivo utilizado para calar a população de Oaxaca seria utilizado nos anos
subsequentes no combate ao narcotráfico, inclusive o desenvolvimento de grupos
paramilitares para ajudar o Estado.
Apesar
de sua curta duração, é inegável seu exemplo para toda a América Latina de que
é possível construir o poder popular. Nosso blog traz hoje um pouco dessa
importante experiência da classe trabalhadora mexicana, principalmente de que o
poder político extrapola em muito o período eleitoral.
CRIAR,
CRIAR, PODER POPULAR!!!
Comuna de Oaxaca: as
mulheres tomam (as antenas d)o céu de assalto
Por Bruno Terribas
Oaxaca, México |
O levante
conhecido como “Comuna de Oaxaca” ocorreu no México de junho a novembro de
2006. A explosão da insatisfação popular foi provocada por uma decisão
repressiva encolerizada do governador Ulises Ruiz Ortiz (PRI) contra protestos
de professores da rede estadual e membros de organizações sociais que ocupavam
há mais de três semanas o zócalo da capital, em prejuízo da imagem turística e
da reputação política do “cacique” local, o governador priísta. Ações
contundentes eram a principal estratégia de pressão do movimento grevista
iniciado em maio de 2006, cujas reivindicações diziam respeito a questões econômicas
da categoria docente, somadas a outras de caráter social destinadas aos
discentes.
Na madrugada do
dia 14 de junho é colocado em ação um plano atroz: a mando do governo de Ulises
Ruiz, milhares de policiais estaduais desalojam violentamente os 30 mil ocupantes
que estavam dormindo em barracas nas dezenas de ruas do Centro Histórico.
O contragolpe
popular vitorioso na manhã do mesmo dia, somada à indignação pelos seguidos
abusos de poder do chefe do executivo estadual, propiciam a criação de uma
frente única de dezenas de organizações políticas e sociais de todo o estado,
apoiada na mobilização de centenas de milhares de oaxaquenhas e oaxaquenhos que
atendem ao chamado das Megamarchas. Surge a Assembleia Popular dos Povos de
Oaxaca (APPO) para exigir “Fora Ulises!”.
A participação
se expandiu pelo estado. A APPO, fórum oaxaquenho de organização das lutas,
cresce para uma perspectiva de “outro poder” frente às instituições
desacreditadas e decadentes. A ideia é que o povo pode dirigir a si mesmo de
maneira autônoma, organizar coletivamente sua vida social e política.
Misturam-se os aportes organizativos da tradição indígena e socialista,
operária e camponesa. Em pleno ano de eleições para a Presidência da República,
o estado de Oaxaca dividiu os holofotes com protestos multitudinários contra a
fraude na contagem dos votos promovidos pelo candidato derrotado.
As três mil
barricadas noturnas relembraram àquelas parisienses de 150 anos, contudo agora
contam com um elemento tecnológico decisivo. É possível enviar os comunicados
urgentes via mensagem de texto, ou ligação, através de telefones celulares,
para um eficaz articulador comunicativo: as diversas rádios ocupadas pelo
movimento.
Desenho de Carlos Latuff |
María, a da TV
María del Cármen Altamirano Vásquez
tem perfil fenotípico diverso daquele da maioria dos mexicanos, é uma mulher de
cerca de 1,80m, magra e de cabelo crespo. Os olhos os têm puxados, daí o
apelido de La China. Maria foi professora rural por 26 anos na Escola Primária
Álvaro Obregón, localizada no distrito San Miguel el Grande, município de
Tlaxiaco, a duas horas e meia de viagem da capital Oaxaca.
A ela coube
escolher o local para entrevista, em razão das ameaças que tem sofrido,
especialmente após 2006. O encontro foi na escola particular onde a maestra
trabalha. Maria diz que preferia ter me atendido em sua própria casa, mas
pensou que seria necessário um tanto de precaução. É certo que não se trata
daquela desconfiança intrínseca à personalidade do mexicano de que fala Octávio
Paz em seu Labirinto da Solidão, mas algo próximo à típica e necessária
clandestinidade de militantes que vivem sob regimes autoritários e repressivos.
A professora
relata que a ocupação da Corporação Oaxaquenha de Rádio e Televisão (CORTV) se
deu porque a Oaxaca TV, canal 9 de televisão, vinha negligenciando o movimento,
regra nos meios de comunicação locais como um todo, à exceção do jornal
Notícias. No melhor estilo Rede Globo durante a campanha das Diretas Já, seus
noticiários não faziam caso das Megamarchas de centenas de milhares de pessoas
que tomavam as ruas; ou, quando as relatava, diminuía os números e a
importância do fato. A abordagem relativa ao movimento social, por sua vez,
vinha carregada de valorações negativas nas reportagens. Tudo o que poderia ser
mal relacionado à APPO era divulgado, e atribuído aos “vândalos” e “grupos
radicais”, os appos.
María conta que
numa conversa noturna ocorrida no começo de junho, um grupo de mulheres que
ocupa a Secretaria de Finanças – algumas delas militantes de organizações
sociais – discutia sobre a necessidade de haver uma articulação entre as
participantes do movimento. Até este momento do levante oaxaquenho, elas tinham
assumido apenas funções acessórias, comparadas às que cabiam aos varones.
Venceremos
A ideia era
organizar uma marcha formada apenas por mulheres no dia 1º de agosto. Algo como
os Cacerolazos ocorridos na Argentina no fim de 2001 e início de 2002.
“Preparamos esse momento com muita sensibilidade, afinal de contas tínhamos
avisado aos conselheiros da APPO que faríamos a marcha. Veja bem: avisamos, não
pedimos”, destaca a professora.
Assumir a
autonomia de suas ações foi um passo difícil. “Era trabalhoso convencer as
companheiras, até ali acostumadas a seguir orientações alheias, a organizar sua
própria atividade política”. No entanto, era fundamental, afinal de contas se
tratava de “uma ação para se fazer respeitar às mulheres”. De todo modo, a
expectativa era o comparecimento de cerca de duzentas compañeras.
O horário
marcado para o início da manifestação é nove da manhã, saindo da Fonte das
Siete Regiones, distante aproximadamente oito quilômetros e meio do zócalo – o
ponto de chegada. A concentração da Marcha de las Cacerolas tem parcas dezenas
de mulheres presentes na manhã daquela terça-feira. “Vamos ser poucas”, lamentam
as organizadoras. Eis que às dez horas, quando a marcha se inicia, o
contingente toma corpo no caminho que o leva ao centro. Na praça central já são
vinte mil, de todas as idades, reunidas na praça. As “organizadoras” se
abraçam, não acreditam no que está acontecendo.
No hotel Missión
Los Angeles, onde se encontra Ulises Ruiz despachando, as mulheres arremessam
ovos e tomates. Lançam também palavrões, muitos palavrões. “Você via
jovenzinhas e anciãs mandando Ulises Ruiz chingar a su madre”, diverte-se María.
Também ouvem-se as palavras de ordem: “¡la mujer luchando y al mundo transformando!, ¡no somos burguesas, ni viejas copetonas [malucas], somos oaxaqueñas, mujeres bien cabronas [bravas]!,¡el puño de la mujer atenta contra el poder! , ¡las mujeres oaxaqueñas dejaremos el mandil [avental] y si fuera necesario agarraremos el fusil!”.
Também ouvem-se as palavras de ordem: “¡la mujer luchando y al mundo transformando!, ¡no somos burguesas, ni viejas copetonas [malucas], somos oaxaqueñas, mujeres bien cabronas [bravas]!,¡el puño de la mujer atenta contra el poder! , ¡las mujeres oaxaqueñas dejaremos el mandil [avental] y si fuera necesario agarraremos el fusil!”.
Em alguns
momentos, não é possível ao menos ouvir as consignas. É o barulho das panelas
que não cessa. Espontaneamente, as mulheres vão ao microfone dizer o que
sentem, o que pensam do que vem acontecendo em Oaxaca, no México e sobre sua
condição de oprimidas .
Ao meio-dia e
meia, alguém na multidão lança a ideia: “Ocupar o canal 9!” Alguns jovens que
estão por perto se prontificam a parar ônibus para transportarem as mulheres até
as instalações, situadas a alguns minutos de viagem dali.
O primeiro
coletivo superlota instantaneamente. A ele se seguem mais cinco, formando um
comboio de camiones carregando oaxaquenhas prontas para escreverem a história.
“Íamos a caminho da liberdade, a conquistar uma voz”. No caminho até o canal de
televisão, a polícia, aquartelada, faz vistas grossas frente à quantidade e o
barulho da carreata.
Ao descerem dos
coletivos encontram o primeiro “bloqueio”. Na entrada das instalações está o
guarda. Baixinho, gordinho, bonachão. Deparado com as entusiasmadas trezentas e
cinquenta mulheres, tenta fechar o portão.
– O que as senhoras querem?
– Um espaço no noticiário.
– Mas de parte de quem, há alguma reunião agendada?
– Somente diga que chegaram umas loucas que querem falar.
– Um espaço no noticiário.
– Mas de parte de quem, há alguma reunião agendada?
– Somente diga que chegaram umas loucas que querem falar.
Na defensiva pela desvantagem
numérica, não lhe resta alternativa senão cumprir as “ordens”.
De seu gabinete,
a diretora da CORTV, Mercedes Rojas Saldaña, solicita que se forme uma comissão
para negociar. Saldaña é ex-deputada pelo PRI e foi colaboradora do candidato a
presidente em 2006, Roberto Madrazo (PRI).
A entrada da comissão abre espaço
para que mais duzentas ingressem ao espaço da CORTV, dando resguardo às
representantes.
– O que as senhoras querem?
– Alguns minutos no seu noticiário.
– Não é possível.
– Por quê? Ninguém do seu canal diz sobre o que está acontecendo em Oaxaca, como a marcha de hoje, o 14 de junho...
– Olhem-se no espelho. O que vocês estão pensando em fazer em frente às câmeras? Vocês são feias, gordas, baixinhas, morenas!
– Sim, somos! E este canal está ocupado a partir de agora – decreta uma estudante.
– Alguns minutos no seu noticiário.
– Não é possível.
– Por quê? Ninguém do seu canal diz sobre o que está acontecendo em Oaxaca, como a marcha de hoje, o 14 de junho...
– Olhem-se no espelho. O que vocês estão pensando em fazer em frente às câmeras? Vocês são feias, gordas, baixinhas, morenas!
– Sim, somos! E este canal está ocupado a partir de agora – decreta uma estudante.
E chamam as compañeras que estão na
parte externa para adentrarem o prédio, que agora sim é de fato La Television
de los Oaxaqueños (e Oaxaquenhas acrescente-se).
Outra
preocupação é a de avisar os presentes à Assembleia Estadual da APPO (que se
realizava ao mesmo tempo) sobre a ocupação do canal. É necessário montar um
esquema de proteção das ocupantes. As cinco mulheres incumbidas da tarefa são
intensamente aplaudidas no plenário quando fazem o anúncio da ocupação.
Com as câmeras
de última geração preparadas, está tudo pronto para começarem as transmissões.
Mas, quem serão as primeiras aparecer na tela?
O problema era que todas queriam.
O problema era que todas queriam.
Três, dois, um... No ar!
Som horrível, imagem cheia de chuviscos, mas ali estava a APPO .
Som horrível, imagem cheia de chuviscos, mas ali estava a APPO .
Na tela, se vê à frente uma dúzia
de mulheres sentadas, atrás faixas onde se lê: “Fora Ulises Ruiz Ortiz” e
“¡cuando una mujer avanza no hay hombre que retroceda!”. A trilha sonora é de
uma canção de protesto chilena. Um punho erguido, outro segurando o microfone,
cantam todas:
– Venceremos! Venceremos!/ Mil
cadenas [correntes] habrá que romper/ Venceremos! Venceremos!/ La miseria
sabremos vencer.
Na manhã do dia
seguinte, as pessoas levam vídeos para serem transmitidos. São imagens do
ataque de 14 de junho, entrevistas em hospitais com professores feridos na
ocasião, imagens das marchas, comícios, encontros. Material gravado e nunca
mostrado em nenhum canal. “É fantástico poder ver isso agora pela primeira
vez”, comemora a jornalista Nancy Davies .
O sonho da TV APPO dura exatas três
semanas. O governo não tolera tamanha afronta.
Na madrugada da
segunda-feira, 21 de agosto um comboio de ao menos sete veículos e cinco motocicletas,
de acordo com testemunhos, percorre as ruas de Oaxaca. É formado por carros da
polícia, estadual e municipal, além furgões sem identificação. Neles estão
homens vestidos com uniformes policiais e com o rosto encoberto, portando armas
automáticas, que atacam a balas as antenas do canal 9, localizadas numa colina
da capital . As armas utilizadas têm alto calibre e algumas são de uso
exclusivo do exército . O ataque deixa ferido o professor Sergio Valencia
Sánchez. É o fim das transmissões e do sonho da TV APPO.
Ao mesmo tempo,
a Radio Cacerola sofre interferência para que não se escute os alertas. O sinal
está destorcido e, logo depois, é tirado do ar. Ainda se consegue denunciar os
ataques e fazer a convocatória: “todos à CORTV” !
Revoltado e encabronado
com a sabotagem ao seu canal de televisão, o povo, mais uma vez vai às ruas
para estabelecer uma vitória política acachapante. Ocupam-se as doze emissoras
comerciais da cidade , em um contragolpe rápido às investidas violentas do
poder institucionalizado e paramilitar para calar sua voz. Com essas rádios
tomadas, o movimento tem agora a possibilidade de atingir 70% do estado . Na
manhã de 21 de agosto, para onde quer que se mude o dial do rádio, a mensagem é
uma só. “Viva a APPO, fora Ulises Ruiz de Oaxaca”! Fonte:http://www.latinoamericano.jor.br/reportagem_oaxaca.html
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